Psiquiatrização de condutas e comportamentos 

Hoje vou falar com vocês sobre o processo de psiquiatrização de condutas e comportamentos. 

Resumidamente posso dizer que se trata da utilização de medicamentos psicotrópicos na “correção” de condutas consideradas indesejadas ou equivocadas para a sociedade atual. Para entender esse processo gostaria de trazer o conceito de medicalização de Michel Foucault, filósofo francês nascido em 1924 e falecido em 1984, considerado um dos maiores pensadores contemporâneo, de extrema importância para a compreensão da nossa realidade.  

Diante de tantos conceitos trabalhados por Michel Foucault vou trabalhar um conceito em particular o de Medicalização da sociedade. 

A concepção de medicalização em Foucault aparece em dois momentos diferentes, o primeiro remete ao processo de crescimento acelerado dos centros urbanos, que vai do início do século XVII e o final do séculos XIX, onde a necessidade de uma sanitarização, um processo de higienização social para a produção de salubridade é essencial para o desenvolvimento das cidades européias. Este processo possibilitou a erradicação de algumas doenças e epidemias bem como diminuir focos insalubres de surgimento de doenças. 

Neste contexto podemos segundo a obra de Foucault identificar as primeiras intervenções de ordem “médicas” na dinâmica social. 

Tais intervenções na ordem de “saúde pública” inaugura por assim dizer a política de saúde pública como cura, e não mais como forma de isolamento e morte das classes pobres, aqui a saúde se apresenta como um ideal de responsabilidade de todos. 

Podemos observar uma crescente da intervenção médica na vida das pessoas, já estabelecendo uma normativa sobre o cotidiano, a fim de promover o desenvolvimento social sustentável no ponto de vista de saúde coletiva em altas densidades populacionais. 

O segundo momento do conceito de medicalização está associado a medicalização indefinida, ou seja, para além da necessidade de sanitarização das cidades devido ao crescimento acelerado dos centros urbanos, a medicina amplia sua influência e seu campo de atuação quase que indefinidamente, Foucault chama de exercício da biopolítica efetiva e sem fronteiras. A medicalização não está apenas associada a dimensão de política pública, ela ocupa todo e qualquer aspecto da vida humana. 

Podemos reparar com ajuda de Foucault, a construção de um ideal de saúde, não apenas ligada a limpeza e a higiene, mas agora para a construção de um corpo individual saudável, este ideal de saúde passa a ser objeto de desejo e lucro. 

Este modelo não tem mais como finalidade isolar e erradicar doenças através da segregação dos corpos, mas sim de uma responsabilidade individual pelo corpo saudável para com o coletivo. Podemos começar a entender a medicalização como um fenômeno histórico, que relata o desenvolvimento da intervenção médica na sociedade a partir do século XVII e sua extensão até os dias atuais. 

O poder exercido pela medicina passa a ter a função de gerenciar a vida, através de uma normatização contínua, de maneira indefinida, ou seja, sobre todos os aspectos da vida humana. 

A medicina neste contexto é a ferramenta necessária para a efetivação desta influência sobre a vida dos indivíduos na sociedade, é fundamental a o exercício do poder para um controle social. Esta lógica produz um discurso de verdade sobre os sujeitos construídas por uma autoridade incontestável, a saúde surge como uma verdade que auto se impõe, validada pela ciência e proporcionando a intervenção a nível individual e coletiva na sociedade, a medicina aparece não apenas para curar doenças, agora exerce autoridade e intervenção sobre comportamentos e desvios.  

Apesar do conceito de Foucault ser específico a contextos observados a partir de rigorosa pesquisa histórica e filosófica, sem querer colocar sobre o autor afirmações que não são suas, chego a um ponto onde eu pessoalmente reflito sobre o processo de psiquiatrização de condutas e comportamentos, explicando melhor, se a medicina tradicionalmente normatiza e interfere em comportamentos que são prejudiciais ao corpo, individual e social, a psiquiatria é a área da medicina que normatiza e interfere nos desvíos de ordem psíquica. 

A psiquiatria trata de transtornos psíquicos de causa e origem física, orgânica. Neste sentido para o tratamento psiquiátrico trata o corpo doente que prejudica as funções psíquicas do indivíduo. Gostaria de ressaltar a importância da psiquiatria no tratamento de patologias antes relegadas ao confinamento social e isolamento, proporcionando a muitos indivíduos e suas famílias a possibilidade de uma vida em sociedade digna, o avanço da psiquiatria é extremamente positiva para a sociedade contemporânea, realizou quebra de diversos preconceitos e paradigmas, entretanto, sua ciência se tornou objeto de desejo e lucro como mencionado acima, e devido a interesses alheios ao processo ético de tratamento de pacientes que apresentam sofrimento de ordem psicológica, nota-se um privilégio do tratamento medicamentoso, em casos que muitas vezes isoladamente sem terapia, são apenas paliativos ou as vezes desnecessários, muitas vezes tais medicamentos são adquiridos até mesmo de forma ilegal, ou seja, sem a prescrição médica especializada, demonstrando que muitas vezes até a revelia do médico psiquiatra, o psicotrópico circula como qualquer outra droga, lícita ou ilícita. Amigos prescrevem uns aos outros, e familiares partilham a medicação para satisfazer e minimizar o sofrimento cotidiano. 

O fenômeno da psiquiatrização de comportamentos e desvios, faz com que problemas psicológicos mesmo não necessariamente de causa biológica sejam tratados como tal, devido a manifestações de sintomas físicos, como palpitações e sudorese no caso da ansiedade ou stress por exemplo, com a intenção de conter os sintomas para que o indivíduo assuma seus afazeres cotidianos dentro da “normalidade”. Neste caso a intervenção médica acontece de maneira privilegiada através do tratamento medicamentoso, pela rapidez da “melhora” do comportamento observável no curto prazo, entretanto, em muitos casos o medicamento proporciona um ocultamento da causa psicológica do sofrimento psíquico, atuando como um mecanismo de fuga do indivíduo, que não consegue por conta do sofrimento se “enquadrar” em uma dinâmica social exigente, principalmente sobre os ideais de saúde, conduta e comportamento, construídos não apenas sobre a constituição do corpo, mas também sobre os aspectos emocionais.. 

O tratamento psiquiátrico de comportamentos, condutas e desvios proporciona em alguns casos o controle e a disciplina, e não necessariamente promove a cura, pelo menos não isoladamente sem o auxílio do tratamento terapêutico. 

Um caso onde podemos observar com mais detalhes é no livro, O Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, que aponta a realidade dos hospitais psiquiátricos brasileiros, em especial Hospital Psiquiátrico Colônia, localizado em Barbacena, MG. 

Onde muitas vezes pacientes sem qualquer diagnóstico ou patologia era tratado como tal, apenas por serem indesejados em seu convívio social e moral. 

Luiz Henrique – Filósofo e Psicanalista 21/07/2020 

ARBEX, Daniela, O holocausto Brasileiro, 1º Edição, Editora Geração, São Paulo, 2013. 

FOUCAULT, Michel, O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro, Forense, Universitária Ed., 1977 

CRUZ, Murilo Galvão Amancio. ZORZANELLI, Rafaela Teixeira, O conceito de Medicalização em Michel Foucault na década de 1970, disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/icse/v22n66/1807-5762-icse-1807- 

576220170194.pdf>, acesso em abril de 2020. 

NASARIO, Marcela, Milena, SILVA Mery da, O consumo excessivo de medicamentos psicotrópicos na atualidade. Disponível em: <http://www.uniedu.sed.sc.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/MarcelaNasario.pdf >, Acesso em abril de 2020. 

Comitê Nacional para Promoção do Uso Racional de Medicamentos, Uso De Medicamentos E Medicalização Da Vida: recomendações e estratégias, 1ª edição – 2019 – versão eletrônica, Brasília – DF, Ministério da Saúde, Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/fevereiro/14/ERRATALivro-USO-DE-MEDICAMENTOS-E-MEDICALIZACAO-DA-VIDA.pdf>, Acesso em março de 2020 

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